O jornalista e escritor Bernardo Valli, em artigo para o jornal La Repubblica, 10-03-2009, analisa a história de guerras da África e o rastro de sangue das chagas abertas desse continente, que o fazem perder sua identidade.
Segundo Valli, "em menos de uma geração, metade da população africana será urbana, e as pessoas se sentirão sempre mais senegaleses, quenianos, gabonenses, camaroneses e não mais serere, ulof, kikuyu, beté, fang ou bamileké". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
A África independente está por completar meio século: foi em 1960 que muitos países conquistaram a soberania nacional. Foi naquele ano que o processo de descolonização, já iniciado na década anterior e anunciado ainda antes, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, acelera o ritmo no continente. O processo se prolongou até os anos 70 para as colônias portuguesas, Angola e Moçambique, obrigadas a esperar a "descolonização interna" de Portugal, isto é, o fim da ditadura de Salazar. Foi entusiasmante, para um jovem cronista como eu era na época, assistir o nascimento de tantas nações. Era um dos grandes acontecimentos do século XX: os africanos se tornavam protagonistas em sua própria terra, que se coloria de tantas bandeiras nacionais, depois de ter sido uma grande mancha ("sem história e sem indivíduos") sobre a qual ondulavam as bandeiras das potências coloniais. Sem a emancipação da África, não haveria hoje, provavelmente, na frente dos Estados Unidos da América, um presidente com uma precisa ascendência africana.
Muitas vezes, a desilusão intervém quando as importantes mudanças da História, que marcaram um progresso e acenderam as fantasias, se chocam com a realidade. Não poucos líderes dos movimentos pela independência, uma vez no poder, se transformaram em verdadeiros déspotas. Não teriam os mesmos tons (um pouco parecidos aos do Ressurgimento [unificação da Itália no século XVIII]) os retratos que eu descrevi dos líderes depois de tê-los encontrado: de Nkrumah, presidente de Gana, ou de Seku Turé, presidente de Guiné, para não falar de Mobutu, presidente do Congo (talvez não totalmente estranho à eliminação de Lumumba, que conheci como representante da cerveja Primus, em Stanleyville).
As explicações são muitas. Uma democracia não nasce espontaneamente. Nós, europeus, sabemos bem disso. Para a África, deve-se lembrar que ao se traçar os limites das suas posses, no fim do século XVIII, as potências colônias não prestaram atenção na homogeneidade cultural dos grupos humanos. Os mesmos limites se tornaram, nos anos 60, os dos Estados-nação independentes. Assim, para dar um exemplo, os povos de língua kongo se dispersaram em três Estados, o Congo ex-francês, o Congo ex-belga e a Angola ex-portuguesa.
Ninguém leva em consideração o fato de que esses povos constituíram no passado um poderoso reino, que durou muito mais ao longo da época colonial. A grande Nigéria, como outros países menores, recolhe um mosaico de grupos heterogêneos (étnicos, tribais) aos quais se sobrepôs uma estrutura estatal. Portanto, muitas vezes nasceram Estados, e não verdadeiras nações. O nacionalismo depois da independência se tornou uma ideologia de Estado que legitimou o poder de um grupo, de uma elite. Quase todas as crises, muitas vezes sanguinárias, das últimas décadas se deveram a choques entre grupos étnicos que disputavam o poder. E os partidos políticos são muito retalhados pelas tribos.
A conscientização da nacionalidade é ainda muito rápida, particularmente nos aglomerados urbanos onde o cruzamento étnico é inevitável e onde reside o poder. Em menos de uma geração, metade da população africana será urbana, e as pessoas se sentirão sempre mais senegaleses, quenianos, gabonenses, camaroneses e não mais serere, ulof, kikuyu, beté, fang ou bamileké.
As crises recorrentes no continente não são uma fatalidade. Há 20 anos, a África austral inteira estava em guerra. Havia guerra civil em Moçambique e na Angola. Uma guerra de libertação no Zimbábue. O apartheid na África do Sul e na Namíbia. Hoje, a África austral saia da guerra. A situação no Zimbábue ainda é detestável.
Desde a independência, a África dos Grandes Lagos conheceu os massacres no Congo ex-belga e a guerra anexa do Katanga; uma feroz guerrilha no Congo ex-francês; o genocídio de 1994 em Ruanda; a guerra civil no norte da Uganda. E a guerra quase mundial no Congo ex-belga, que se tornou Zaire e depois República Democrática, com a intervenção de nove países e a participação de um impreciso número de grupos armados. Seria arriscado dizer que tudo vai bem agora na República Democrática do Congo. Porém, é preciso indicar que houve eleições: tanto legislativas quanto presidenciais. Seguidas, é verdade, por uma outra crise na região dos Grandes Lagos.
Na África ocidental, houve a guerra do Biafra, a guerra civil na Libéria e em Serra Leoa. Os conflitos na Nigéria se acalmaram. A Costa do Marfim destruiu a sua imagem de país ordenado e de bem-estar. E depois há o Chifre da África, onde as ex-colônias italianas foram por muito tempo o coração de conflitos: pela independência da Eritréia; a revolução etíope que mandou embora a monarquia; e sobretudo o drama da Somália. País que, nos anos 60, quando declarou a independência, foi indicado como um exemplo de democracia.
Essa lista longa, exaustiva, mas incompleta, serve para destacar que hoje restam muitas crises no estado latente, mas que só uma merece ser definida como uma crise aberta e sanguinária: a do Darfur, uma guerra suja que pode transbordar para os países vizinhos. Muitas ditaduras se transformaram em democracias, mesmo que precárias. A grande difusão de telefones celulares, muitas vezes também em vilarejos isolados, favorece as comunicações, uma troca de informação e de ideias, impensáveis há um tempo.
As chagas da África são muitas: vão desde a mortalidade infantil, à malária, à tuberculose à Aids.
Em "The Bottom Billion", Paul Collier, estudioso da economia do desenvolvimento, procura explicar a pobreza dos condenados da Terra: o bilhão de mulheres de homens que vivem em cerca de 58 países, 70% na África subsaariana. Os principais motivos seriam quatro:
os conflitos armados que se repetem sem descanso, mais ou menos intensamente, de modo crônico, e sempre latentes, que geram instabilidade, uma baixa taxa de escolaridade e uma intensa criminalidade;
a maldição dos recursos naturais, que, por representarem um maná, criam um desastroso clientelismo nos sistemas democráticos e uma arma perigosa nos autoritários;
a interclusão, isto é, a situação dos países sem acesso ao mar e dependentes dos que o circundam e abusam da sua posição privilegiada impondo taxas e impostos;
o governo ruim.
O futuro não é rosa, diz Collier: a paisagem mundial se escurece sobre os países pobres, que sofrerão o peso da crise mais do que os outros.
Segundo Valli, "em menos de uma geração, metade da população africana será urbana, e as pessoas se sentirão sempre mais senegaleses, quenianos, gabonenses, camaroneses e não mais serere, ulof, kikuyu, beté, fang ou bamileké". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
A África independente está por completar meio século: foi em 1960 que muitos países conquistaram a soberania nacional. Foi naquele ano que o processo de descolonização, já iniciado na década anterior e anunciado ainda antes, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, acelera o ritmo no continente. O processo se prolongou até os anos 70 para as colônias portuguesas, Angola e Moçambique, obrigadas a esperar a "descolonização interna" de Portugal, isto é, o fim da ditadura de Salazar. Foi entusiasmante, para um jovem cronista como eu era na época, assistir o nascimento de tantas nações. Era um dos grandes acontecimentos do século XX: os africanos se tornavam protagonistas em sua própria terra, que se coloria de tantas bandeiras nacionais, depois de ter sido uma grande mancha ("sem história e sem indivíduos") sobre a qual ondulavam as bandeiras das potências coloniais. Sem a emancipação da África, não haveria hoje, provavelmente, na frente dos Estados Unidos da América, um presidente com uma precisa ascendência africana.
Muitas vezes, a desilusão intervém quando as importantes mudanças da História, que marcaram um progresso e acenderam as fantasias, se chocam com a realidade. Não poucos líderes dos movimentos pela independência, uma vez no poder, se transformaram em verdadeiros déspotas. Não teriam os mesmos tons (um pouco parecidos aos do Ressurgimento [unificação da Itália no século XVIII]) os retratos que eu descrevi dos líderes depois de tê-los encontrado: de Nkrumah, presidente de Gana, ou de Seku Turé, presidente de Guiné, para não falar de Mobutu, presidente do Congo (talvez não totalmente estranho à eliminação de Lumumba, que conheci como representante da cerveja Primus, em Stanleyville).
As explicações são muitas. Uma democracia não nasce espontaneamente. Nós, europeus, sabemos bem disso. Para a África, deve-se lembrar que ao se traçar os limites das suas posses, no fim do século XVIII, as potências colônias não prestaram atenção na homogeneidade cultural dos grupos humanos. Os mesmos limites se tornaram, nos anos 60, os dos Estados-nação independentes. Assim, para dar um exemplo, os povos de língua kongo se dispersaram em três Estados, o Congo ex-francês, o Congo ex-belga e a Angola ex-portuguesa.
Ninguém leva em consideração o fato de que esses povos constituíram no passado um poderoso reino, que durou muito mais ao longo da época colonial. A grande Nigéria, como outros países menores, recolhe um mosaico de grupos heterogêneos (étnicos, tribais) aos quais se sobrepôs uma estrutura estatal. Portanto, muitas vezes nasceram Estados, e não verdadeiras nações. O nacionalismo depois da independência se tornou uma ideologia de Estado que legitimou o poder de um grupo, de uma elite. Quase todas as crises, muitas vezes sanguinárias, das últimas décadas se deveram a choques entre grupos étnicos que disputavam o poder. E os partidos políticos são muito retalhados pelas tribos.
A conscientização da nacionalidade é ainda muito rápida, particularmente nos aglomerados urbanos onde o cruzamento étnico é inevitável e onde reside o poder. Em menos de uma geração, metade da população africana será urbana, e as pessoas se sentirão sempre mais senegaleses, quenianos, gabonenses, camaroneses e não mais serere, ulof, kikuyu, beté, fang ou bamileké.
As crises recorrentes no continente não são uma fatalidade. Há 20 anos, a África austral inteira estava em guerra. Havia guerra civil em Moçambique e na Angola. Uma guerra de libertação no Zimbábue. O apartheid na África do Sul e na Namíbia. Hoje, a África austral saia da guerra. A situação no Zimbábue ainda é detestável.
Desde a independência, a África dos Grandes Lagos conheceu os massacres no Congo ex-belga e a guerra anexa do Katanga; uma feroz guerrilha no Congo ex-francês; o genocídio de 1994 em Ruanda; a guerra civil no norte da Uganda. E a guerra quase mundial no Congo ex-belga, que se tornou Zaire e depois República Democrática, com a intervenção de nove países e a participação de um impreciso número de grupos armados. Seria arriscado dizer que tudo vai bem agora na República Democrática do Congo. Porém, é preciso indicar que houve eleições: tanto legislativas quanto presidenciais. Seguidas, é verdade, por uma outra crise na região dos Grandes Lagos.
Na África ocidental, houve a guerra do Biafra, a guerra civil na Libéria e em Serra Leoa. Os conflitos na Nigéria se acalmaram. A Costa do Marfim destruiu a sua imagem de país ordenado e de bem-estar. E depois há o Chifre da África, onde as ex-colônias italianas foram por muito tempo o coração de conflitos: pela independência da Eritréia; a revolução etíope que mandou embora a monarquia; e sobretudo o drama da Somália. País que, nos anos 60, quando declarou a independência, foi indicado como um exemplo de democracia.
Essa lista longa, exaustiva, mas incompleta, serve para destacar que hoje restam muitas crises no estado latente, mas que só uma merece ser definida como uma crise aberta e sanguinária: a do Darfur, uma guerra suja que pode transbordar para os países vizinhos. Muitas ditaduras se transformaram em democracias, mesmo que precárias. A grande difusão de telefones celulares, muitas vezes também em vilarejos isolados, favorece as comunicações, uma troca de informação e de ideias, impensáveis há um tempo.
As chagas da África são muitas: vão desde a mortalidade infantil, à malária, à tuberculose à Aids.
Em "The Bottom Billion", Paul Collier, estudioso da economia do desenvolvimento, procura explicar a pobreza dos condenados da Terra: o bilhão de mulheres de homens que vivem em cerca de 58 países, 70% na África subsaariana. Os principais motivos seriam quatro:
os conflitos armados que se repetem sem descanso, mais ou menos intensamente, de modo crônico, e sempre latentes, que geram instabilidade, uma baixa taxa de escolaridade e uma intensa criminalidade;
a maldição dos recursos naturais, que, por representarem um maná, criam um desastroso clientelismo nos sistemas democráticos e uma arma perigosa nos autoritários;
a interclusão, isto é, a situação dos países sem acesso ao mar e dependentes dos que o circundam e abusam da sua posição privilegiada impondo taxas e impostos;
o governo ruim.
O futuro não é rosa, diz Collier: a paisagem mundial se escurece sobre os países pobres, que sofrerão o peso da crise mais do que os outros.
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